Por Geraldo Ribeiro - O GLOBO
Fotografia: Gabriel de Paiva /Agência O Globo
Luiz Angelo da Silva é vascaíno e salgueirense. No mês passado, ele esteve pela primeira vez no estádio de São Januário, em São Cristóvão, sede do seu time do coração, e na quadra da escola de samba pela qual torce, na Tijuca. Poucos dias antes de completar 105 anos, fez as duas visitas para gravar imagens do documentário “Vida na fé — matriz africana: edição Bangbala”, que será lançado com exposição homônima no próximo dia 27, no Centro Cultural dos Correios, no Centro. O filme e a mostra — que vai permanecer no espaço cultural por dois meses e depois seguirá para a Baixada Fluminense — retratam a trajetória do ogã mais velho em atividade no Brasil.
Nascido em 1919
Mais conhecido como Ogan Bangbala, Luiz é um respeitado ogã, personagem que desempenha papéis importantes nas casas de culto de matriz africana. Sua função principal é tocar instrumentos de percussão, como atabaques, e comandar os rituais, inclusive fúnebres, além de organizar e manter a ordem dos terreiros. Nascido em 21 de junho de 1919, em Salvador, na Bahia, Bangbala teve sua iniciação religiosa bem cedo, aos 14 anos, no terreiro de mãe Lili de Oxum. Ainda jovem, veio para o Rio e se estabeleceu na Baixada, no bairro Shangri-lá Rosa, em Belford Roxo, onde mantém o terreiro Asé Shangrilá.
Apesar da idade avançada, ainda participa de todas as atividades do terreiro, tocando instrumentos que ele mesmo faz, como xequerê (cabaça envolta por rede de contas), berimbau e atabaques. Além dos rituais, onde também canta os pontos em iorubá, é presença constante nos cursos que acontecem nos fins de semana, quando repassa aos mais jovens conhecimentos acumulados ao longo dos anos. Também costuma ser convidado para terreiros em vários estados e eventos acadêmicos. De poucas palavras, Bangbala resume o segredo de viver muito e bem:
No caso dele, isso significa tomar uma cervejinha e, de vez em quando, umas doses de uísque. A dieta inclui feijão carregado de carnes, mocotó e frango com quiabo, afirma Maria Moreira, de 60 anos, sua esposa. Ela garantiu ainda que a última bateria de exames pedida pelo médico não apontou qualquer doença.
— Ele não tem colesterol alto ou diabetes. Só toma remédio para a pressão e para o coração, que já está meio fraco, em função da idade.
Sua saúde foi posta à prova durante a pandemia, quando pegou Covid-19. Mas, apesar da febre alta e do comprometimento de quase 50% do pulmão, se recuperou sem sequelas. No ano passado, passou mal em casa e chegou a ficar internado durante sete dias. A falta de oxigenação no cérebro comprometeu um pouco a memória. Hoje, tem dificuldade de organizar as ideias, mas consegue se lembrar até de passagens da juventude, como quando trabalhou em uma companhia aérea.
O emprego não foi suficiente para fazê-lo superar o maior medo: viajar de avião. A única vez que entrou numa aeronave foi em maio de 2017. Bangbala estava na Bahia quando recebeu a notícia da morte da grande amiga e líder espiritual, a ialorixá Beatriz Moreira Costa, a Mãe Beata de Iemanjá, aos 86 anos. Como já tinha se comprometido a comandar a cerimônia fúnebre, não teve como escapar do voo. O mesmo temor faz com que venha adiando há cinco anos o recebimento de uma homenagem prometida pelo governo da Nigéria.
— Dizem que é seguro (viajar de avião), mas eu não confio — desconversa.
Vaidoso, recebeu a reportagem em seu terreiro, ao lado da equipe que organiza a exposição e o documentário, vestindo calça e camisa brancas de linho, relógio dourado e sapato bicolor (preto e dourado). Sem esquecer, óbvio, das guias.
No armário, guarda uma coleção com mais de 15 relógios e mais de 30 pares de sapato. Bangbala, no entanto, é muito mais do que pode fazer supor o homem vaidoso de idade avançada que não descuida da aparência. Para Anderson Bangbose, babalorixá e curador da exposição, se trata de uma figura crucial na construção de grandes terreiros tradicionais do Rio e de Salvador, além de ser a perfeita tradução do griô (o indivíduo que detém e divulga a memória de sua comunidade).
— O Pai Luiz é uma pessoa que representa muito o candomblé não só do Rio, como da Bahia e do Brasil. É uma figura que muito contribuiu para o desenvolvimento e o aprendizado da religião. É o mestre de muitas pessoas, principalmente porque o candomblé é oralidade. É o conhecimento passado nos terreiros. Ele é o ogã de todas as casas, de todos os axés, de todas as famílias e de todos os lugares.
Memorial na Baixada
Professora, escritora e historiadora da Uerj, Elaine Marcelino, também curadora da mostra, define Bangbala como um arquivo vivo:
— Pai Bangbala é um arquivo vivo que traz a ancestralidade. Mostrar seu legado é importante por resgatar a memória de todos os nossos antepassados.
A exposição vai reunir pertences, documentos e objetos sagrados e pessoais, como móveis, atabaques, sapatos, medalhas, comendas e contas. Após cumprir temporada no centro do Rio, a mostra vai ganhar um memorial permanente em Belford Roxo.
— A relevância de uma exposição como essa em outro espaço, que não o religioso, é para que a história dele saia do anonimato e atinja outros públicos. É importante também para mudar um pouco a imagem que algumas pessoas fazem dos integrantes das religiões de matriz africana e mostrar o que essas figuras, como Bangbala, fizeram por nós e contra a intolerância religiosa, a homofobia e o racismo — explica Anderson Bangbose.
Fábio França, que divide com Anderson a direção do documentário, conta que a ideia de fazer o filme, com 27 minutos de duração, surgiu durante o processo de pesquisa para a mostra. Depois de ganhar sessões na sala de cinema do Centro Cultural dos Correios, em paralelo à exposição, a ideia é buscar outros espaços de exibição e cumprir o circuito dos festivais.
— Sabendo que ele foi um dos que fundaram ou ajudaram a abrir muitas casas de matriz africana aqui no Rio, fomos direto na fonte. Então, os grandes pais e mães de santo, por saber que a gente estava querendo homenageá-lo, abriram suas portas e conseguimos colher muitas riquezas. Com o material em mãos decidimos contar a história dele também através do audiovisual — lembra Fábio, que, em sua pesquisa, concluiu que o ogã homenageado ajudou a fundar mais de 50 terreiros e casas de candomblé só no Rio. — A primeira parte do documentário, ficcional, retrata, com a ajuda de atores, a juventude e a iniciação no candomblé. Depois vêm fatos importantes da vida dele e a produção termina com as visitas ao Vasco e ao Salgueiro— completa o diretor.
Homenagens
Essa não é a primeira vez que Bangbala é reverenciado. Em 2014, ele foi agraciado com a medalha de comendador entregue pela então presidenta Dilma Rousseff: uma honraria da Ordem do Mérito Cultural. O carnaval, outra paixão, também já o homenageou. Em 2020, Bangbala foi enredo da Unidos do Cabuçu. Por dois anos, também desfilou na Grande Rio — naquele mesmo 2020, quando a escola contou a história do lendário babalorixá Joãozinho da Gomeia, e em 2022, quando a agremiação foi campeã com enredo sobre Exu. Na Bahia, o ogã centenário foi por 15 anos diretor do Afoxé Filhos de Ghandi, e no Rio ajudou a fundar outros afoxés.
— Bangbala é uma das heranças das nossas tradições e das nossas sabedorias ancestrais mais importantes. Ele virou um grande ogã, sabe muito bem as tradições Jeje, Ketu e Angola, as cantigas e os rituais — define o babalorixá Ivanir dos Santos.
Matéria publicada pelo Jornal O GLOBO, do dia 07/07/2024, através do link abaixo: https://oglobo.globo.com/rio/noticia/2024/07/07/aos-105-oga-mais-velho-do-brasil-que-ajudou-a-fundar-50-terreiros-so-no-rio-ganha-filme-e-exposicao-sobre-sua-vida.ghtml
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